Denúncias de abuso sexual contra João de Deus: um segredo conhecido em Abadiânia

Joao Teixeira de Faria, John of God

Brazilian "spiritual healer" Joao de Deus arrives at his "healing center" Casa de Dom Inacio de Loyola, in Abadiania Source: EVARISTO SA/AFP/Getty Images

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Other ways to listen

Entrevistamos a antropóloga professora-doutora Cristina Rocha e ela faz uma análise da estrutura de poder nas relações dos líderes espirituais com os seus seguidores e fala das fortes conexões de João de Deus com a Austrália.


"Boatos circulavam há tempos na cidade", diz a antropóloga Cristina Rocha, de Sydney, uma das maiores autoridades da Austrália em religião e que escreveu um livro sobre João de Deus e a globalização da cura espiritual brasileira.
Ela também comenta das novas alegações estarrecedoras contra João de Deus, no Brasil, da ativista Sabrina Bittencourt, que estão sendo analisadas pelo Ministério Público de São Paulo.
Leia aqui a entrevista na íntegra.

Qual foi a sua primeira reação ao saber das denúncias públicas contra João de Deus, de abuso sexual e estupro de mulheres, posse ilegal de armas, dinheiro vivo em cofres secretos em casa? Ficou surpresa?

A gente tem que dividir as acusações. A acusação de abuso sexual eu não fiquei surpresa porque já tinha ouvido boatos. Ouvi durante meu projeto de pesquisa de dez anos sobre a globalização do movimento do João de Deus, na Casa Dom Inácio, o Centro Espiritual de João de Deus em Abadiânia, e também com a pesquisa que fiz com os australianos e americanos.

Nesses dez anos eu ouvi estórias de abuso sexual, tanto que em 2006 uma agência que levava o João de Deus para a Alemanha cancelou a visita porque havia uma alemã que o havia acusado de abuso. Só depois de alguns anos que eles voltaram atrás e começaram a trazer ele de novo.

Haviam muitos boatos mas nunca encontrei ninguém, nunca soube de algum história real, como está acontecendo agora. Posse ilegal de armas eu fiquei mais surpresa e dinheiro em cofres secretos também.

A Austrália é um dos países com ligação mais forte com João de Deus, com “sucursais” da Casa de Dom Inácio de Loyola aqui e agências levando milhares de australianos a Abadiânia em busca da “cura” com João de Deus.  Qual foi o impacto do escândalo sexual com a prisão preventiva de João de Deus entre os seus seguidores na Austrália?

O impacto ainda não está sendo sentido. As notícias vêm primeiro em Português e os estrangeiros, inclusive os australianos, não lêem o português, então eles são filtrados pelos guias de turismo. Duas coisas estão acontecendo: uma é que o João de Deus sempre falou que não era ele quem curava, quem curava era Deus e que existiam várias outras entidades lá na Casa.

O que eles têm falado é que mesmo se o João de Deus estiver preso, as pessoas devem ir à Casa porque a ‘energia de cura’ está la, também se acredita que existe um grande cristal embaixo da casa de Dom Inácio que ajuda as entidades a terem mais energia para curar, uma energia curativa.

Eles ainda incentivam as pessoas a irem e passarem duas semanas na casa para serem curados. Eles têm falado, ‘olha existem essas acusações mas a gente tem que esperar o que a justiça brasileira vai falar’.

Essas acusações de tráfico de bebês, começaram agora a circular. Mas em geral os guias de turismo ainda estao querendo levar as pessoas com as datas marcadas, está tudo certo, como anteriormente.

O guia Peter Waugh, da Nova Zelândia, disse que estava levando novos grupos, normalmente.

Exatamente, o Peter Waugh foi uma das pessoas que eu entrevistei para o meu livro sobre o João de Deus e a globalização do movimento dele. Ele levou o João de Deus duas vezes para a Nova Zelândia, em 2006 e em 2007, eventos muito bem sucedidos com 4 mil pessoas por dia.

Há muitos anos ele [Peter Waugh] leva neozelandeses mas também australianos para ver o João de Deus. Ele continua levando, ele fala que a energia, as entidades estão lá só o João de Deus que não.

As visitas de João de Deus a Austrália também foram um sucesso apesar das reportagens feitas pela televisao comercial australiana apontando ele como um charlatão.

Isso é verdade. Em 2014 o João de Deus veio a Austrália, fez o evento dele no Olympic Park. Como sempre o João de Deus sempre tem a mídia e os médicos dizendo que ele é um charlatão, não é médico, não tem diploma, que tem muito dinheiro. Estamos acostumados com essas acusações mas não com essas que apareceram e que são muito graves.

Sabemos que o Brasil é um país que ainda carrega, em alguns setores da sociedade, uma mentalidade escravagista, na tradição do coronelismo e clientelismo brasileiros. Nos úitimos dias vieram à tona, pela ativista Sabrina Bittencourt,  novas  denúncias, muito mais sérias – agora sendo investigadas pelo Ministério Público – de alegada escravização e assassinato de mulheres, supostamente mantidas em cárcere privado para parir, ano após ano, e de tráfico destes bebês, supostamente envolvendo João de Deus, em alegados garimpos ilegais nas suas fazendas.  É tudo tão horrível que é difícil até falar destas denúncias. Que tipo de homem seria capaz de estar envolvido de crimes desta magnitude?

A gente sabe que o Brasil central é um lugar onde as leis são muito personalistas, a gente tem uma tradição de coronelismo, de grandes latifundiários que têm uma vila, ou uma cidade dentro da sua propriedade, então eles escolhem os políticos, o prefeito, controlam a polícia e a economia.

Existem dois fenômenos importantes da sociologia que a gente estuda no Brasil: um é o coronelismo e o mandonismo, que é esse poder que os oligarcas ruais tem. Mas ao mesmo tempo tem um outro fenômeno chamado clientelismo, que é essa relação de cliente e patrão. O oligarca dá proteção e emprego para as pessoas em troca de obediência e apoio.

O João de Deus tem essa relação com a cidadezinha de Abadiânia. Em um dos anos que estive lá, era época das eleições para prefeito (2008) e a cidade inteira, taxistas, pousadas, estava toda com adesivos do candidato do João de Deus, imagine o poder que esse homem tem na cidade.

As pessoas dependem dele, os donos das pousadas, dos supermercados, todo o setor de serviços. Uma pessoa com muito poder e que está na fronteira, onde a lei é muito tênue.  Se até hoje não se sabe o que acontece com uma figura no Rio de Janeiro, como a da vereadora assassinada Marielle Franco. Imagine lá onde as coisas são ainda mais opacas. Fiquei muito chocada com as alegações gravíssimas, mas parece que há provas.

Que tipo de homem? Uma figura histórica, um homem no Brasil que é esse coronel e que tem essa relação de patrão-cliente, de clientelismo. Vemos também na Umbanda, várias religiões, essa relação de patronagem: o líder religioso protege você contra a doença, o sofrimento, o perigo, pode até te dar emprego, e você obedece e serve essa pessoas, tem essa troca.

A ativista Sabrina Bittencourt diz que vai apresentar denúncias contra outros 13 líderes religiosos no Brasil. Nos círculos acadêmicos, trabalha-se com o conceito de “predador espiritual”?

A gente não trabalha com isso. A gente trabalha com essa ideia de carisma, que o líder espiritual tem.  Um carisma que o coloca acima das pessoas normais, das outras pessoas. E esse carisma pode vir da virtude dele, de ser uma pessoa especial, ética, ou que também tem poderes sobrenaturais. O que vimos em Hollywood com os escândalos de abuso de Harvey Weinstein, Kevin Spacey, e aqui na Austrália Jefrey Rush e Don Burke, é essa diferença de poder, seja por ser uma celebridade ou porque ele tem poder sobre sua vida, a sua profissão, que você perde o seu trabalho, o seu emprego, se você denunciar.

Acho que a grande diferença não está só na religião – onde  temos a Comissão Real de Investigação de Abusos de Crianças, na religião católica, anglicana, aqui na Australia. Vemos isso também no budismo, onde um mestre tibetano foi acusado de estar abusando de mulheres, no zen budismo também com o Eido Shimano em Nova York que também abusou das mulheres, alunas, por muitos anos, então temos essa diferença de poder.

Uma pessoa tem muito poder seja espiritual ou econômico, seja uma celebridade, e a outra pessoa tem pouco poder ou nenhum. E aí as pessoas, principalmente as mulheres, têm medo de falar, porque vão perder o emprego. Até a chegada do movimento #MeToo, a vítima é que vai sofrer as consequências, porque o abusador não sofre as conquências dos seus atos. Isso também acontece no esporte, com os jogadores de rugby aqui na Austrália, que foram acusados de abuso mas poucos sofreram as consequências de seus atos.

A popular caracterização de “lavagem cerebral” é real? Poderia explicar porque algumas mulheres voltam e são vítimas  em várias ocasiões, por acreditar cegamente no seu líder espiritual? 

‘Lavagem cerebral ‘ é uma coisa que a mídia começou a falar nos anos 60, com o crescimento dos movimentos religiosos, que se chamavam de cultos, então a ‘pessoa estava num culto e não podia sair’. A nossa pesquisa não sustenta isso.

Lavagem cerebral não existe, o que existe são esses líderes carismáticos que usam da religião para conseguirem o que querem. Dizem às pessoas que é para virem várias vezes, para serem curadas, se não vierem, se não fizerem o tratamento, vão sofrer consequências.

Também pode existir uma relação simbiótica entre o lider e o crente. O líder sempre coloca nas pessoas, e principalmente nas mulheres, a sensação de que elas estão erradas, de que elas precisam se purificar, se tranformar e ele que está ajudando elas a entrarem no caminho da espiritualidade.

Mas é importante não pensar só em mulheres. No João de Deus, nos dez anos que eu participei desses eventos internacionais, metade das pessoas na plateia eram homens. Então para falar que as mulheres são suscetíveis, não entendem, que são irracionais, emocionais, espirituais, isso não bate com a pesquisa. O João de Deus fazia abuso sexual de mulheres, mas homens e mulheres iam a Casa e eram seguidores dele. Acho que existe essa dependência com o líder espiritual.

Muitas pessoas não vêem que estão sendo abusadas ou duvidam de si mesmas. A psicologia fala disso, que a pessoa congela, que ela tenta entender que está errada, que não deve ter sido isso, ela começa a duvidar de  si mesma.

A dinâmica de poder entre as duas partes é um fator fundamental.

Ainda mais quando a pessoa tem um carisma espiritual ou é um líder espiritual, porque essa pessoa está sempre certa, pura. Acho que a grande diferença aí é a diferença de poder. 

Agora pela cobertura da mídia brasileira sabemos que João de Deus era muito temido também, em Abadiânia.

Ao mesmo tempo que ele era muito adorado pela população. Abadiâna é dividida em dois, era uma cidadezinha a 100 km de Brasília e quando fizeram a estrada entre Brasilia e Anápolis, o prefeito de Abadiânia – porque era uma cidade muito muito pobre – resolveu mudar a cidade para ficar ao lado da estrada.

Então é uma cidade planejada, como Brasília. E o outro lado da periferia da cidade é onde está a Casa Dom Inácio, que é o carro chefe da economia de Abadiânia. Esse pessoal que está desse lado que depende do João de Deus, todos gostavam muito dele e ainda gostam, mas imagino que ele seja muito temido pois tinha muito poder.

Nas denúncias públicas, o Ministério Público brasileiro disse que recebeu denúncias de 3 mulheres na Austrália que seriam supostas vítimas de abusos sexuais – fala-se, na mídia australiana, de um caso de suicídio –  e de uma mulher envolvida com a adoção de  bebês do Brasil. Você tem conhecimento de algum destes casos? 

Não. Os casos que eu ouvi eram da Alemanha, da Austrália não. Estou acompanhando tudo pela midia, mas não conheço essas mulheres e nem a mulher que diz que adotou um bebê e que não quer dar o nome porque não quer perder o seu filho, e isso é muito complicado porque a criança já está aqui há muito tempo, imagino. 

Dra. Cristina, a senhora é um a das maiores especialistas em religião na Austrália. Como um crente nos poderes de João de Deus pode, ou consegue,  conciliar as duas faces do seu líder espiritual, supostamente um homem do bem, com as revelações estarrecedoras sobre os alegados crimes?

O que eu tenho visto, é que é importante diferenciar o homem da ‘entidade’. E isso sempre aconteceu no meu trabalho de campo, o homem é falível, é um homem que pode ter sido levado pelos seus desejos e pode ser violento, mas a ‘entidade’ é uma entidade de luz, então quando ele está incorporado, ele é uma entidade de luz, nós até chamamos de ‘a entidade”.

Quando ele não está 'incorporado', você via o João de Deus passeando por aí com sua 4x4, cheio de ouro em volta do pescoço e falando um português do interior.

Imagino que e o único jeito de entender esse paradoxo entre o bem (fiz entrevistas com várias pessoas que foram para Abadiânia e realmente se sentiram bem) e essas acusacões que são horríveis e que, como existem evidências, que estão sendo investigadas, a gente espera pelo resultado.

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