Pesquisa de socióloga portuguesa sobre a solidão de idosos em asilos inspira contos de escritora australiana premiada

Idosos reformados portugueses parecem não ter interesse no acordo bilateral entre Portugal e a Austrália de Segurança Social

Idosos reformados portugueses parecem não ter interesse no acordo bilateral entre Portugal e a Austrália de Segurança Social, assinado desde 1991. Source: Getty Images/Dean Mitchell

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Other ways to listen

A socióloga Barbara Barbosa Neves, que pesquisa há quase 10 anos o impacto da solidão nos idosos que vivem em asilos no Canadá e na Austrália, viu na parceria com Josephine Wilson a possibilidade de gerar mais empatia nas pessoas sobre o tema dos seus estudos através da literatura.


Foi ao ler o romance Extinctions, da escritora australiana Josephine Wilson, que a doutora em sociologia Barbara Barbosa Neves, professora da Universidade Monash em Melbourne, teve a ideia de propor uma parceria à autora para levar histórias e personagens reais da sua pesquisa científica para a literatura. 

Josephine Wilson ganhou em 2017 o prêmio Miles Franklin, o maior da literatura australiana, ao narrar a história de um engenheiro aposentado que vai morar em uma vila para idosos e se depara com a dificuldade de lidar com o envelhecimento e a solidão. Ao ler o livro, Barbara diz ter tido a sensação de estar lendo o conteúdo da própria pesquisa escrito de uma forma tão bonita, que ela, como escritora científica, nunca estaria apta a escrever.
Escritora Josephine Wilson
Josephine Wilson se inspirou em personagens e histórias da pesquisa da Barbara para falar nos seus contos sobre a solidão nos lares de idosos. Source: Supplied
Barbara então decidiu fazer contato com Josephine para propor que ela desse uma nova linguagem ao material coletado na pesquisa através da sua escrita. Josephine gostou da ideia e recebeu da Barbara as gravações e transcrições das entrevistas feitas por ela durante a pesquisa. A partir daí foram escolhidos dois personagens, um homem de 90 anos e uma mulher de 79, que ganharam nomes fictícios escolhidos por eles próprios. 

Segundo Barbara, a escolha de Gurney e Patricia foi feita pelo fato de os dois sofrerem muito com a solidão, e cada um ter uma forma própria de lidar com a dor de se sentir só. Gurney através do humor e Patricia ao observar as árvores da janela do seu quarto compartilhado no asilo em que vive. 

A riqueza de detalhes e a sensibilidade do olhar de Josephine Wilson sobre os personagens na sua narrativa chamaram a atenção da socióloga para aspectos contidos na pesquisa, aos quais ela não tinha se atentado antes.
Socióloga Barbara Barbosa Neves
Barbara Barbosa Neves entendeu melhor o seu papel como tradutora do sentimento dos idosos em asilos a partir dos textos de Josephine Wilson. Source: Supplied
Entre esses aspectos, a visão da solidão como algo dinâmico, que se desenvolve também a partir do que acontece externamente, no entorno da pessoa; a relação da solidão com sensações físicas de toque, cheiro, espaço; e até mesmo o papel da Barbara como pesquisadora que traduz o sentimento de um grupo de pessoas, e amplifica as vozes daqueles que sofrem com a solidão nos asilos. 

No conto "A Patricia tem 79 anos e gosta de olhar para as árvores, mas a Patricia não é uma árvore", a escritora Josephine Wilson destaca também a visão que os entrevistados tem sobre a Barbara, em trechos como esse:

"A Patricia gosta mesmo dessa rapariga que veio conversar com ela. Gosta de tudo nela, desde o modo como se inclina para si, sentada na cadeira, até ao cuidado com que regista todas as palavras que a Patricia diz como se a Patricia tivesse mesmo importância. A jovem ouve-a com tanta atenção que a Patricia fica com medo de a decepcionar. A jovem quer saber o que a Patricia pensa e, quando a Patricia não sabe o que dizer, ela incentiva-a com modos delicados. Já há muito que ninguém lhe pergunta como se sente, com a expectativa de ouvir a verdade. De facto, já faz tanto tempo que a Patricia não amolda os seus sentimentos a palavras reconhecíveis que não tem a certeza de ainda ser capaz de o fazer. Fala uma fala partida em pedaços, com pausas pelo meio, como se a sua história de vida tivesse sofrido um acidente e ficasse toda quebrada pelo chão." 

O conto é concluído com o hábito diário da Patricia, de olhar pela janela, ver o movimento, as árvores e refletir sobre a solidão:

"A solidão, diz Patricia, é estar sentada nesta cadeira sozinha todo o dia. É solitário, não é? E é o que eu faço. Muito. Todos os dias. Mas temos mesmo de falar disso?

Há muitos que vêm para cá e põem-nos numa cadeira e ali ficam e nunca ninguém vem vê-los. Quando me sinto só, olho lá para fora pela janela. Ora veja: carros, pessoas, cães a passear. Não se está sozinho quando se tem vistas. Ali vai um indivíduo a caminhar. Tem de se caminhar muito e eles vêm das casas até cá acima às lojas. Ele até podia apanhar aquele autocarro, mas isso é preguiça.

Porque não posso eu ser feliz como são as árvores?"
Lonely, Senior Woman Sitting by Window with Eyes Closed
Personagem de nome fictício Patricia tem na vista da janela do seu quarto um alívio para a solidão. Source: Getty Images/PamelaJoeMcFarlane
A tradução dos originais em inglês para o português foi feita pela tradutora literária portuguesa Isabel Pedro dos Santos. Ela também traduziu o conto fantástico "Fugir da solidão: o voo de Gurney", que ressalta a paixão do senhor de 90 anos por aviação e a crítica que ele tem a quem acha que todos os idosos gostam de jogar bingo. 

"Um dia, o Gurney acordou de um sonho agitado e viu-se não na sua cama de solteiro coberta com um resguardo impermeável, mas no cockpit de um Cessna 172 Skyhawk, a ganhar altitude. O sol punha-se e já as primeiras estrelas mordiscavam buraquinhos no canto do céu. Inclinou-se sobre os comandos de voo, verificou os ailerons e iniciou uma volta. Já mal se via o contorno daquilo a que chamavam “Lar”, onde vivera aprisionado durante sete anos. Bom, mas não iria voltar a semelhante lugar. Foxtrot-Sierra!"

"Não haveria mais portas com cunhas para que não fechassem e funcionários a espreitar de cara virada para baixo, preenchendo os quadradinhos das folhas de registo, a confirmar que o nº 7 ainda estava sentado direitinho e meio vivo! Não haveria mais banhos na cama. Não haveria mais comida triturada e consumida à luz de lâmpadas fluorescentes. Não haveria mais chá frio e bolachas baratas. Não haveria mais bingo.

Bingo!"
Não haveria mais comida triturada e consumida à luz de lâmpadas fluorescentes. Não haveria mais chá frio e bolachas baratas. Não haveria mais bingo. Bingo!
A ideia da Barbara agora é, passada a pandemia, quando ela voltar a apresentar a sua pesquisa às plateias, em vez de usar o tradicional Power Point no início das apresentações, ler os contos da Josephine Wilson, para ver se a audiência vai ter mais empatia com o tema. 

Ao falar em pandemia, Barbara lamenta tudo de ruim que a COVID-19 trouxe, como a dor das famílias que perderam seus entes queridos. Mas ela acredita que o isolamento social ao qual muitas pessoas tiveram que se submeter, pode gerar uma reflexão importante no sentido de entender o que os idosos sentem quando vivem nesses locais, sem poder sair, sem receber visitas, sem ver de perto as pessoas que amam, e de como essa situação pode intensificar um sentimento de solidão com o qual é muito difícil lidar. 

Para Barbara, "a solidão tem uma dimensão social e coletiva, e por isso a resposta de combater a solidão é de todos nós."

Barbara Barbosa Neves descreve a colaboração com Josephine Wilson no arquivo científico , publicado no jornal Qualitative Research


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