Para ser enfermeira reconhecida na Austrália, siga este guia passo-a-passo

Enfermeiras do hospital de Blacktown, Sydney, a celebrarem o Dia International da EnfermeiraInternational Nurses Day

Enfermeiras do hospital de Blacktown, Sydney, a celebrarem o Dia International da Enfermeira, comemorado no dia 12 de maio Source: Supplied

Se está a planear iniciar a sua carreira como enfermeira na Austrália, mas tem um diploma tirado no seu país, existem alguns passos que precisa considerar para se tornar um profissional qualificado no setor. Kristine Dawang, professora de enfermagem e líder do centro de treino preparatório para o Objective Structured Clinical Examination (OSCE), partilhou connosco o guia passo-a-passo para uma enfermeira ser aceite como profissional certificada na Austrália. Ainda no âmbito deste artigo, numa entrevista áudio complementar que poderá ouvir clicando na imagem de abertura da peça, a SBS em Português falou ainda com duas enfermeiras portuguesas, Andreia Cardoso e Lina Videira, que nos explicaram como correram os processos delas na Austrália.


Um pouco por toda a Austrália, os hospitais estão altamente necessitados de profissionais certificados para lidar com pacientes vítimas de Covid-19. Enfermeiras e parteiras são aliciadas a interromperem as suas baixas médicas, licenças e férias para regressarem ao trabalho. Depois, acabam por receber horas excessivas de turnos duplos e horas extraordinárias extra.

A pandemia criou uma escassez de funcionários no setor de saúde. É por isso que o país está agora a pedir que enfermeiros estrangeiros respondam à extrema necessidade de pessoal nos hospitais.


DESTAQUE:

  • Em 2021, contaram-se cerca de 450.000 enfermeiras e parteiras qualificadas e reconhecidas na Austrália, mas o país está a enfrentar escassez de funcionários hospitalares no contexto do aumento de pacientes com COVID-19 durante a pandemia
  • Para trabalhar como enfermeiro na Austrália, é preciso responder aos requisitos mínimos obrigatórios do uso da língua inglesa, bem como garantir as equivalências do processo do NMBA
  • Existem exames separados e diferentes para IQNM (Internacional Qualified Nurse and Midwife) que pretendem começar a trabalhar na Austrália como RN (Registered nurse), enfermeira EN (Enrolled Nurse) matriculada na universidade, ou parteira.

Mas antes de poder trabalhar como enfermeiro na Austrália, é fundamental ter feito a aplicação ou já ter obtido a aprovação do Conselho de Enfermagem e Obstetrícia da Austrália (NMBA).

Tal como explica Kristine Dawang, educadora de enfermagem líder de um centro de treinamento preparatório para o Exame Clínico Estruturado Objetivo (OSCE), as Enfermeiras e Parteiras Qualificadas Internacionalmente (IQNMs) só podem obter o certificado de enfermagem australiano através da Agência Australiana de Regulação de Profissionais de Saúde (AHPRA).

A AHPRA avalia os pedidos de certificação com muita atenção e avalia os diferentes critérios relativos aos requisitos obrigatórios estabelecidos por cada conselho.
As enfermeiras estão expostas a todo o tipo de perigos, durante todas as suas horas de trabalho
As enfermeiras estão expostas a todo o tipo de perigos, durante todas as suas horas de trabalho Source: Harlene Martin Pereyra
Check-in automático
Os nossos aplicantes precisam primeiro de fazer um auto check-in no website da AHPRA. Ao fazerem este check-in, saberão logo se estarão qualificados para fazer o Outcome-Based Assessment (OBA)
Esclarece Dawang.

Um depósito não reembolsável de $640 é, então, pago à AHPRA para verificação da documentação e permissão para participação no dia de orientação (Orientation Day) que coloca à disposição todas as informações sobre todo o processo de certificação e sistema de saúde australiano.

Portfólio

Nesta fase, os candidatos devem fornecer informações pessoais e de contato adicionais, bem como documentação de identificação e qualificação. É ainda preciso agregar ao processo as evidências e a documentação necessárias para apoiar a inscrição, tais como prova de identidade, o currículo académico, licença e histórico de emprego com os referentes documentos de apoio.

A seguir, assim que todos os documentos forem revistos e aprovados, o enfermeiro estrangeiro requerente recebe uma carta de encaminhamento da AHPRA.

Avaliação Baseada em Resultados

A Avaliação Baseada em Resultados (OBA) é um processo de avaliação em duas etapas: um exame de perguntas de múltipla escolha (MCQ) e um exame clínico estruturado objetivo (OSCE).

A primeira fase é uma avaliação cognitiva. É um exame MCQ, feito no computador, que é avaliado em centros de teste desta natureza. Os enfermeiros farão ainda o Exame de Licenciamento do Conselho Nacional para Enfermeiros Registados (NCLEX-RN).

O Conselho Nacional de Conselhos Estaduais de Enfermagem (NCSBN) desenvolve e administra o NCLEX-RN através dos centros de teste Pearson VUE, que existem na maioria dos países. Os candidatos têm que passar neste exame para puderem ser considerados para a segunda parte da OBA.

A taxa de inscrição do NCLEX-RN é de $200, mais uma taxa de agendamento internacional adicional de $150 ($350 no total), conforme indicado no site da NMBA.

OSCE

A segunda fase é uma avaliação comportamental sob a forma de um exame clínico estruturado objetivo (OSCE). O OSCE foi desenvolvido para avaliar se uma enfermeira ou parteira qualificada internacionalmente tem o conhecimento, as habilidades e a competência de uma enfermeira ou parteira australiana de pós-graduação. O exame é administrado pela AHPRA e é realizado na Adelaide Health Simulation, em Adelaide, no sul da Austrália.

A taxa a pagar pelo OSCE é de $4.000.

Os candidatos elegíveis que estão ainda localizados fora da Austrália só conseguirão uma vaga no RN OSCE se fornecerem comprovativo de Visto válido pelo menos 3 meses antes das datas programadas do exame.

Como ex-examinadora, Dawang refere que os cenários típicos num exame OSCE são em tudo idênticos aos cenários diários que os enfermeiros internacionais encontrarão nas suas secções nos hospitais australianos. É por isso que o desempenho e a prática são partes integrantes da preparação. As aulas preparatórias criam, sobretudo, a confiança e pensamento crítico necessários para se ter sucesso no exame.
Eu acho que quando se trata de preparação, os programas de revisão são muito úteis. Além disso, leia o manual da OSCE da AHPRA porque eles oferecem dicas a todos os candidatos, especialmente para os enfermeiros qualificados internacionalmente.
Sugere Dawang.

Depois dos enfermeiros candidatos passarem nos testes NCLEX e OSCE, podem finalmente fazer a sua inscrição no AHPRA e no NMBA.
As enfermeiras internacionais trazem um novo nível de experiências para dentro do hospital: cultura, língua, outros métodos e estratégias
As enfermeiras internacionais trazem um novo nível de experiências para dentro do hospital: cultura, língua e outros métodos e estratégias Source: GettyImages/Jetta Productions Inc.

 

Agora que já tem mais informação acerca do processo pelo qual qualquer enfermeiro certificado internacionalmente tem que passar para exercer a profissão na Austrália, oiça a entrevista com duas enfermeiras portuguesas, respetivamente Lina Videira (a exercer a profissão na Austrália) e Andreia Cardoso (que desistiu de ser enfermeira cá) que complementa este artigo. Para ouvir, clique na imagem de abertura desta peça.

Procurámos saber qual é a realidade profissional de Lina Videira e a situação atual de Andreia Cardoso, duas enfermeiras de carreira iniciada em Portugal.

Hoje, a vida de ambas deu uma grande volta. Lina finalizou o processo de certificação com sucesso e hoje exerce a profissão cá. Andreia viu-se obrigada a desistir do sonho por razões várias e considera que, "apesar da saudade da profissão" da qual sente falta até hoje segundo nos confessou, ser enfermeira já é carta fora do baralho.

Comecemos por Lina Videira, que está na Austrália há 10 anos, vive na Central Coast e trabalha já há alguns anos no Hospital de Gosford.

Lina passou por todo o processo de certificação que, segundo diz:
Já há 10 anos atrás era um processo stressante, burocrático, caro e longo.
Mas Lina não desistiu e lá conseguiu adquirir o seu certificado oficial de enfermeira na Austrália. Hoje não poderia estar mais feliz e, entusiasticamente, incentiva todas as enfermeiras portuguesas, brasileiras, timorenses, africanas... a tentarem a sua sorte. Diz Lina que:
o processo de certificação aqui vale ´1000%´ a pena porque, apesar do imenso stress e despesa, uma vez concluído é altamente compensatório ser enfermeira nos hospitais australianos.
Lina acrescenta ainda que “ser enfermeira na Austrália não tem nada a ver com ser enfermeira em Portugal”. E justifica a afirmação da seguinte maneira:
O ensino da enfermagem em Portugal é excelente, mas as condições de trabalho, em contrapartida, são péssimas e um enfermeiro trabalha que nem um mouro para ganhar pouco mais do que 7 euros/hora.
Mais, Lina garante que só aqui é que se sentiu protegida nos seus direitos, incentivada na sua formação profissional contínua e, realmente, valorizada pelo seu esforço diário ao serviço dos seus pacientes no hospital:
Apesar do ensino da enfermagem em Portugal ser mais profundo e prático do que aquele que é proporcionado aos alunos de enfermagem na Austrália, curiosamente depois é na Austrália que o nosso valor profissional é realmente reconhecido a todos os níveis.
A Austrália tem escassez de enfermeiras e parece valer a pena exercer a profissão aqui, quando comparadas as realidades australianas e portuguesa.
A Austrália tem escassez de enfermeiras e parece valer a pena exercer a profissão aqui, quando comparadas as realidades australianas e portuguesa. Source: Getty Images
Lina observou ainda que durante a pandemia COVID 19 todos os sistemas de saúde do Mundo foram naturalmente postos à prova, e que “mais do que os enfermeiros na Austrália, heróis são os enfermeiros europeus; principalmente os portugueses que trabalham com rácios horríveis de pacientes por enfermeiro, tiveram muito mais pacientes no contexto da pandemia e trabalharam com condições muito piores do que na Austrália”.  Diz Lina, que
Se fosse enfermeira em Portugal, talvez tivesse desistido da profissão durante o pico da pandemia.
Aqui, em contrapartida, apesar das recentes manifestações nas ruas em que enfermeiros e parteiros reivindicaram por melhorias de salário e retificação das condições de trabalho - “que depois da pandemia fazem muito sentido já que o sistema de saúde precisa de melhorias” refere Lina; mesmo assim, os enfermeiros são valorizados dentro e fora dos hospitais.

Lina diz ainda que os enfermeiros na Austrália são carinhosamente tratados pelas pessoas na rua. E isso sabe bem no final de um dia extenuante de trabalho no hospital, com certeza.

Acrescenta ela que a comunidade australiana faz questão de agradecer e celebrar o esforço dos enfermeiros:
Nunca vi isto em Portugal, mas aqui a comunidade aproxima-se de nós porque nos vêem nos cafés e nos supermercados ainda com a farda do trabalho, e oferecem um café, perguntam como correu o dia, agradecem e desejam sorte para o turno da noite
Já para Andreia Cardoso, com quem também conversámos acerca desta matéria, ser enfermeira na Austrália é um sonho adiado, talvez para sempre:
Acabou por ficar para segundo plano, porque o processo de certificação das habilitações é muito dispendioso, altamente stressante, frustante e demorado. Um sonho tão complicado que com as despesas da vida de uma emigrante que chega à Austrália com dois filhos para criar e uma vida para começar, não deu para concretizar.
Confessa, Andreia. 

Em Portugal, Andreia foi enfermeira cerca de 6 anos, primeiro no hospital de Tomar e mais tarde no de Vila Franca de Xira.

A ex-enfermeira chegou a Sydney em 2014 com o marido e dois filhos, e diz que se há algo que ainda hoje lhe custa é ter deixado a sua carreira para trás:
Tenho muitas saudades, confesso. E acho que nunca irei bem ultrapassar ter desistido da enfermagem.
Andreia queixa-se, sobretudo da falta de flexibilidade, modernidade e rapidez de processo por parte das entidades em Portugal que tratam da documentação necessária para anexar ao processo de creditação na Austrália, que diz  também contribuir muito para tornar todo o processo ainda mais complicado e caro.

Acima de tudo, para Andreia a questão do custo do processo de creditação pesou muito na sua decisão: “Cheguei aqui com dois filhos em idade escolar e as nossas prioridades financeiras enquanto família não me permitiram continuar com o processo de creditação como enfermeira. Como residente temporária, na época, tive que fazer escolhas óbvias.”

Ainda chegou a trabalhar nos hospitais como ´blood coletor´ (a tirar sangue, como se diz na enfermagem em Portugal). Diz Andreia que
Blood colector é uma das profissões permitidas às enfermeiras internacionais não-certificadas na Austrália. E ainda pensei que pudesse ser relativamente fácil transitar de blood colector para enfermeira neste país, visto que é um país de reconhecida escassez em enfermeiros. No entanto, deparei-me como vários obstáculos e acabei por não fazer esta transição até hoje.
A vida acabou por levar Andreia para outros desafios e hoje dedica-se a uma outra atividade profissional no ramo da importação, a qual acumula com um part-time na área da nutrição, e não antevê o regresso aos hospitais como enfermeira de serviço.
Chega a uma altura na vida em que temos que nos abrir a outras oportunidades que surgem e às quais, depois de nos habituarmos, também acabamos por gostar.
Andreia aceitou a sua nova situação profissional com resiliência e até já sente algum prazer no que faz agora, olhando assim para a enfermagem de um novo ângulo:
Para ser sincera, hoje e num contexto de pandemia, dou por mim a sentir-me decepcionada com a forma como os profissionais de saúde são tratados. É uma profissão altamente desgastante e na qual eu questiono até que ponto vale a pena estar a investir tempo e dinheiro, da minha vida pessoal e familiar.
Sobre todos estes pontos, e muitos outros, acerca da realidade destas duas enfermeiras portuguesas residentes na Austrália, oiça a entrevista áudio onde muito mais é abordado e explicado.

 

 

 


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