Chef portuguesa prepara sonhos de padaria para ajudar brasileiros vítimas de enchentes na Austrália

Odete e família

A portuguesa Odete Pereira Faria e sua família, que preparam sonhos (bolas de Berlim) para ajudar brasileiros afetados pelas enchentes em Queensland. Source: Supplied

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Odete Pereira Faria teve a ideia de vender sonhos, chamados de ‘bolas de Berlim’ em Portugal, e doar parte da renda a dois casais de brasileiros que perderam muito com os alagamentos em Queensland. “Faço isso porque já fui ajudada quando precisei, e para dar exemplo de solidariedade às minhas filhas”.


Sonhos de padaria que de certa forma ajudam pessoas que estão passando por dificuldades a não desistirem dos seus sonhos, ou a reconstruí-los. A portuguesa Odete Pereira Faria, que chegou na Austrália com o marido e a filha mais velha há oito anos e teve aqui a segunda filha, é chef de cozinha e até 2021 morou em Wollongong, Nova Gales do Sul.  

No final do ano passado ela se mudou com a família para Brisbane, capital de Queensland, e este ano passou a fazer sonhos, primeiro como um hobby, mas mais recentemente, diante das fortes chuvas e enchentes que afetaram a região e centenas de pessoas que perderam tudo, ou parte do que tinham, Odete viu na venda dos sonhos a possibilidade de angariar fundos para ajudar algumas dessas pessoas.  

Habilidade recente 

Apesar de já cozinhar há muito tempo, a produção de sonhos é algo novo na vida de Odete. Ela conta que sempre quis aprender a receita, mas nunca acertava. Recentemente, quando ainda morava em Wollongong, NSW, ela pediu que um confeiteiro que conhecia a ensinasse.  

Mas ela só experimentou a receita quando já estava em Brisbane, e resolveu levar para os colegas de trabalho, grande parte deles brasileiros, que apovaram os sonhos assim que provaram. Foi aí que ela descobriu que no Brasil o nome do quitute era esse.  

“Para mim foi novo porque eu não conhecia como sonho. Em Portugal chamamos de ‘bola de Berlim’, e normalmente consumimos na praia, onde alguém passa com uma geleira vendendo.”
Eu não conhecia como sonho. Em Portugal chamamos de ‘bola de Berlim’, e normalmente consumimos na praia, onde alguém passa com uma geleira vendendo.
Odete também diz que o sabor mais comum e tradicional em Portugal é o de ‘creme de pasteleiro’, que é o que ela faz, com algumas adaptações.
Sonhos
Os sonhos ou bolas de Berlim preparados pela Odete, com o tradicional recheio de creme de pasteleiro popular em Portugal. Source: Supplied
A ideia de vender os sonhos, ou bolas de Berlim, veio com as recentes enchentes no estado de Queensland, e a partir da venda das marmitas de refeições que Odete ja fazia antes, que ela divulga nas redes sociais e faz sob encomenda.  

“Quando começaram as cheias aqui em Brisbane, eu tinha duas geladeiras cheias de marmitas para entregar e as pessoas não tinham como vir buscar. Meu marido então propôs que nós fôssemos entregar com o nosso carro, para as pessoas não ficarem sem comida, sem suas encomendas.”  

Odete conta que o que ela e o marido viram naquele dia, eles só tinham visto antes nos noticiários. As estradas estavam alagadas, muitas delas interditadas. Havia casas cheias de água, e muitas pessoas perderam parte dos bens ou até mesmo tudo o que tinham. “Aquilo partiu meu coração, ver o que aconteceu àquelas pessoas que ficaram sem nada, que perderam tudo.”
Aquilo partiu meu coração, ver o que aconteceu àquelas pessoas que ficaram sem nada, que perderam tudo (nas enchentes em Queensland).
Sonhos solidários 

Pouco depois disso, Odete lembra que soube da história da Claudia e do Lucas, casal de Gold Coast que perdeu metade do patrimônio da empresa de salgados deles porque teve a garagem do prédio onde mora alagada até o teto.  

contando o que aconteceu, como ela e o marido Lucas encararam a situação e o quanto ficaram gratos por receberem ajuda de amigos e pessoas que nem conheciam, entre elas a Odete.  

“Quando eu vi o que aconteceu à Claudia e ao Lucas eu disse ao meu marido que queria ajudar. Mas me dei conta de que doar A$50 ou A$100, valor que eu teria condições de doar pelo meu orçamento, não ajudaria muito. Aí eu tive a ideia de fazer os sonhos para vender e reverter parte da renda em doação para o casal.”
Quando eu vi o que aconteceu à Claudia e ao Lucas eu disse ao meu marido que queria ajudar. Aí eu tive a ideia de fazer os sonhos para vender e reverter parte da renda em doação para o casal.
Ela então divulgou a ideia na página de brasileiros em Brisbane no Facebook e a adesão da comunidade brasileira na cidade foi maior do que esperava. Foram muitas as encomendas de sonhos feitas a ela.  

“A solidariedade do povo brasileiro é fantástica. Enche o coração ver a união dos brasileiros para ajudar aqueles que estão a passar necessidades. A princípio eu ia doar para o casal 50% da renda da venda dos sonhos, mas depois resolvi tirar para mim só o valor que tinha gastado para comprar os ingredientes e vou entregar em mãos à Claudia o restante do valor arrecadado.”
A solidariedade do povo brasileiro é fantástica. Enche o coração ver a união dos brasileiros para ajudar aqueles que estão a passar necessidades.
Receita que deu certo 

Poucos dias depois de ter tomado a iniciativa de preparar sonhos para ajudar a Claudia e o Lucas, Odete soube da situação da Priscila e do Thiago, outro casal de brasileiros que perdeu praticamente tudo com o alagamento da casa onde viviam, que ficou inundada até o teto.  

“Eu fiquei a saber da situação da Priscila através das redes sociais, através do Facebook, e de todo o movimento que se organizou também para ajudá-la. O que eu lembro que me chamou a atenção foi ver uma fotografia de uma casa coberta de água até o telhado.”
Eu fiquei a saber da situação da Priscila através das redes sociais. Me chamou a atenção ver uma fotografia no Facebook de uma casa coberta de água até o telhado.
Odete conta que mais uma vez a comunidade brasileira se uniu para ajudar o casal e os dois filhos que ficaram sem teto. Ela disse que eles conseguiram um apartamento para onde ir e receberam doações de móveis e roupas.  

“Toda a gente tem ajudado e eu pensei: fizemos pela Claudia, correu bem, e para quem perde tanto, o que quer que seja que ganha é uma ajuda. Então decidi fazer mais uma vez a venda dos sonhos e reverter a renda para doação, agora para a Priscila.”  

Novamente Odete recebeu muitas encomendas. Foram mais de 200 para serem entregues no final de semana.  

Trabalho em família 

Para conseguir atender toda a demanda e entregar as muitas encomendas, Odete diz que conta com a ajuda do marido e até mesmo das filhas, de 13 e 7 anos. É ela quem prepara as bolas de Berlim, mas o marido organiza as encomendas e entregas. A filha mais velha lava a louça e a mais nova ajeita as caixinhas para colocar as os sonhos dentro.  

E mesmo com todos ajudando, para conseguir preparar todos os sonhos encomendados, Odete se priva de muitas horas de sono.  

“No fim de semana passado eu acordei na sexta feira às 4h30 da manhã, fui ao meu trabalho, voltei para casa, trabalhei (preparando os sonhos) toda a noite de sexta para sábado. Talvez tenha dormido uma hora. Fui entregar as encomendas, trabalhei toda a noite de sábado para domingo, e no domingo fui entregar o resto das encomendas.”  

Odete diz que percebeu o quanto esse ato de solidariedade dela era importante quando a filha mais velha, de 13 anos, olhou para ela e disse: “mãe, o que estás a fazer é tão bonito.” Nesse momento Odete conta que pensou: “esse é o exemplo que eu quero dar às minhas filhas.”
Minha filha olhou para mim e disse: 'mãe, o que estás a fazer é tão bonito.' Nesse momento eu pensei: esse é o exemplo que quero dar às minhas filhas.
Todos no mesmo barco 

Para Odete, o fato de ela e a família serem imigrantes na Austrália, terem chegado no país com poucos pertences e terem contado com a ajuda de várias pessoas aqui, a faz saber como é construir uma vida fora do país de origem, passar or dificuldades e ter com quem contar.
Odete e marido
Odete e o marido chegaram na Austrália há oito anos e contaram com a ajuda de várias pessoas quando precisaram. Por isso Odete ajuda outros imigrantes. Source: Supplied
“Nós passamos por tantas dificuldades, e eu sou católica. Acredito que quando passamos por dificuldades, Deus sempre colocou um anjo no nosso caminho. Falei com meu marido que neste momento, se eu puder ser esse anjo na vida de alguém, eu vou ser, porque ninguém entende o que é passar por dificuldades até ter que passar por elas.”
Nós (da família) passamos por tantas dificuldades, e Deus sempre colocou um anjo no nosso caminho. Neste momento, se eu puder ser esse anjo na vida de alguém, eu vou ser.
Sobre o fato de Odete ser portuguesa e estar ajudando brasileiros, ela diz: “Para mim, não há distinção. Todos nós somos uma comunidade. Aliás, a comunidade brasileira me acolheu e recebeu de braços abertos. Eu sinto-me mais integrada na comunidade brasileira do que na comunidade portuguesa.”
A comunidade brasileira me acolheu e recebeu de braços abertos. Eu sinto-me mais integrada na comunidade brasileira do que na comunidade portuguesa.
E completa: “O que aconteceu foi uma catástrofe enorme, mas todo este movimento que se criou para ajudar é uma coisa bonita e a comunidade brasileira está de parabéns.” 


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