Como é ser mãe de um adolescente fazendo transição de gênero na Austrália?

Luciana Wright and Jakob

Luciana Wright and Jakob Source: Supplied

O filho de Luciana Wright começou a transição de gênero aos 12 anos e atualmente, aos 16 anos, Jakob se identifica como homem. “Resolvi amá-lo e respeitá-lo em todos os momentos possíveis e imaginários,” diz Luciana.


As leis australianas permitem que um adolescente que se identifique como transgênero possa mudar de nome e de sexo na maioria dos documentos. Na área da saúde, os direitos incluem receber tratamentos de hormônios ou cirurgias para a transição de gênero, tudo subsidiado pelo Medicare, o sistema de saúde público australiano. 

Cada estado na Austrália possui as suas próprias legislações e em Victoria e na Tasmânia, por exemplo, qualquer adolescente acima de 16 anos pode trocar o seu gênero na certidão de nascimento após fazer um requerimento online.

Já em outros estados, como na Western Australia/Austrália Ocidental, Território Norte, South Australia/Austrália do Sul e ACT/Território da Capital Australiana, é necessário comprovar que você já tenha passado por algum tipo de tratamento hormonal durante a transição ou apresentar uma autorização de um médico ou psicólogo responsável. Em apenas dois estados, em Queensland e em New South Wales, ainda é necessário passar por uma cirurgia de ressignificação de gênero antes de solicitar a mudança na certidão de nascimento.

A brasileira Luciana Wright, de 52 anos, mora na Austrália há 22 anos, atualmente em Gold Coast, em Queensland. Ela é a mãe do Jakob, que aos 13 anos contou para ela que gostaria de transitar do gênero feminino para o masculino. Aliás, foi assim que ela ficou sabendo que este seria o seu novo nome.

Hoje, aos 16 anos, Jakob é visto como um herói no colégio em que estuda e todos o admiram pela sua coragem de transitar do gênero feminino para o masculino. Segundo a Luciana, a transição acontece não apenas com a pessoa envolvida, mas também com toda a família. Confira a seguir os principais trechos da entrevista. 

Descoberta e processo de transição

SBS em Português- Luciana, quando você percebeu pela primeira vez que o seu filho não queria mais se identificar como uma menina e sim como um menino?

Luciana Wright -  Para mim é difícil identificar o início da história porque foi um período onde houve muita negação e insatisfação da minha parte. Antes da transição ele era uma menina bem ‘tomboy’ (expressão que designa uma garota que age e se veste como um garoto) e só curtia a companhia de meninos. 

Nós saímos da Austrália e fomos morar no Brasil na fase de pré-adolescência  do Jakob e retornamos para Austrália quando fez 12 anos. Para ele o retorno foi muito difícil, não houve adaptação na escola junto aos grupos das meninas e rolaram algumas exclusões. Na época eu fuxiquei algumas conversas em redes sociais e li comentários onde ele achava que era bissexual. Em seguida quis cortar o cabelo bem curto e só se vestia como um menino.

Me disse que não queria mais usar uniforme de menina na escola e que já tinha conversado sobre essa mudança com a orientadora escolar, e que a escola precisava da minha autorização em relação à essa mudança. Durante a reunião com a orientadora eu fui informada que também haveria uma mudança de nome e foi aí que eu comecei a entender que ele estava decidido e determinado a transitar.

SBS em Português- E qual foi a sua reação quando o seu filho, que na época tinha 12 anos, te falou que estava decido a mudar de gênero e que todos na escola já sabiam? 

LW - Eu fiquei inicialmente chocada e muito frustrada. Eu sentia que havia falhado como mãe e acreditava que tinha que ter uma razão, um trauma, um problema ou um defeito na educação. Eu via a transição como ago muito negativo e destrutivo. Ficava investigando motivos e razões que pudessem ter levado o meu filho a querer eliminar sua identidade original. Eu havia me convencido que esse processo tinha grandes chances de vir de algum lugar muito sofrido e dolorido dentro dele. Me questionava o que o havia levado a essa decisão tão drástica e desesperada. Queria me convencer de que era apenas uma fase e que eu seria capaz de convencê-lo a voltar atrás.

Hoje eu me sinto mal por ter agido desta forma. Por fazer ele se sentir inapropriado, errado, como alguém que precisava ser consertado. No início eu o levei a um psicólogo com a esperança de que o quadro fosse revertido e para minha surpresa o psicólogo apoiou a transição. Me lembro que eu conversava com ele questionando a escolha que ele estava fazendo, até que um dia ele me ensinou que ser homem não era uma escolha, era quem ele era de verdade, e que não tinha cabimento eu ou ninguém duvidar dessa identidade.

Ele me disse que entendia a minha dificuldade pois a filha que eu tinha havia morrido e que estava tudo bem eu sofrer por causa dessa perda. Nós encontramos muito material sobre o assunto na internet e ele mesmo dividiu comigo uma série de fontes para que eu ficasse mais a par do processo. 

SBS em Português- Qual foi a reação da família e também dos amigos próximos?

LW - O pai foi muito amoroso e acolhedor. O irmão mais novo (que na época estava para completar 10 anos) foi um grande defensor da felicidade do Jakob e me ensinou muito em relação à aceitação e compaixão. Os avós brasileiros e australianos foram muito parceiros e rapidamente acomodaram seus conceitos e sentimentos para zelar pelo que fosse melhor para o neto.

No caso das pessoas próximas, eu tive amigas que se recusaram a chamar ele pelo novo nome enquanto o Jakob não solicitasse diretamente. Muitos amigos meus ficaram bem desconfortáveis e se afastaram da gente. Foi um período em que me senti muito solitária e excluída do meu grupo social. Alguns ficavam sem graça pois sem querer usavam pronomes femininos e soltavam o nome de nascimento dele de vez em quando. Mas os que permaneceram ao meu lado tomaram a decisão de transitar junto com a gente, de aprender a adequar o vocabulário, a se perdoar por chamá-lo pelo nome antigo.

SBS em Português- Você comentou comigo antes desta entrevista que o Jakob não gosta de ser chamado de “homem trans”, mas sim, apenas de homem, sem o prefixo trans. Fale um pouco sobre isso.

LW - Eu aprendi com ele que para quem transita o mais importante é o destino e não a jornada. Principalmente para quem passa por isso na adolescência, que é um período de auto-afirmação e consolidação da identidade de uma pessoa. O prefixo “trans” significa para ele uma ideia de identidade de gênero incompleta, e eu percebo que ele se sente diminuído como homem quando  existe uma alusão ao gênero anterior. Eu entendi que mesmo que a gente não faça por mal, é meio mesquinho ficar trazendo à tona que a pessoa possui um gênero modificado.

SBS em Português - Como tem sido o processo de transição de gênero do Jakob, psicologicamente e também fisicamente?

LW - Nós começamos com acompanhamento psicológico particular, com encaminhamento imediato por parte do psicólogo para a Gender Clinic de um hospital público estadual daqui de Queensland.

Na Gender Clinic de Brisbane recebemos informações, suporte com assistente social, psicólogo e endocrinologista. Iniciamos o tratamento hormonal inicialmente com bloqueadores a cada 3 meses, que interromperam o funcionamento dos hormônios femininos quando o Jakob tinha 13 anos. Essa primeira fase do tratamento é reversível.

Depois aguardamos aproximadamente dois anos para entrar na segunda fase e tomar hormônios masculinos a cada 3 semanas – essa fase é irreversível e tem consequências terminais para a fertilidade feminina. Tivemos a opção de preservação de óvulos (não subsidiada pelo governo) mas ele escolheu não fazer. As consultas custam aproximadamente $400 dólares cada, mas não precisamos pagar pois temos Medicare e assim estamos cobertos pelo sistema de saúde público da Austrália. Optamos também por acompanhamento particular com um professional em nutrição para tentar compensar da melhor forma possível os efeitos da exposição prolongada aos hormônios.

SBS em Português- O Jakobtem contato com outros adolescentes que estão passando ou já passaram pelo mesmo processo que ele?

LW - Não. Eu acho que ele não sente necessidade de trocar experiências pois existe muita aceitação e troca de informações dentro da nossa família e do nosso círculo de amigos.

Escola e convívio social

SBS em Português- Como é a vida do Jakob na escola e nos eventos sociais em que ele participa?


LW - Meu filho já é um adolescente e por isso nem sempre eu estou presente para ver como ele é tratado. Foram os amigos da escola que o acolheram muito no início do processo, e inclusive o ajudaram a escolher este nome que ele adotou. Todos já tinham acolhido o Jakob muito antes de eu relaxar e aceitar a situação. Uma vez eu comentei com o meu filho mais novo que eu ficava preocupado com a forma como o Jakob poderia sofrer algum preconceito, e ele me disse “Mãe, o Jakob é um herói na escola. As pessoas se referem a ele como o menino que teve coragem de ser quem ele é. Ele é amado e admirado pelos colegas”.

O Jakob faz parte dos grupos de atores da escola há 3 anos, e sempre consegue passar nas audições para os papéis principais das produções. Ele é elencado para papéis masculinos e acho que isso ajuda bastante na construção positiva da sua auto-estima na identidade masculina. Ele também pratica vôlei em um time masculino e sempre é selecionado para o time em campeonatos regionais.

Hoje ele tem um grupo bem coeso de amigos que são muito parceiros, frequentam sempre a nossa casa, viajam conosco. É muito bom ver que ele tem esse sentimento de pertencimento.

SBS em Português - Toda mãe tem preocupações com os filhos. Quais são algumas das preocupações extras de uma mãe de um filho trans?

LW - No início o Jakob teve um pouco de trabalho extra para ser acolhido pelas rodas de meninos, e eu ficava morrendo de medo quando ele dormia na casa de amigos meninos com outros meninos, tinha vontade de avisar aos pais que ali na verdade tinha uma menina. Nunca fui adiante com essa intenção pois sabia que estaria sabotando o projeto de vida do meu filho de ser visto como um homem, porém confesso que eu ficava vulnerável com a idéia de que ele pudesse estar se colocando em uma posição vulnerável.

Depois da primeira namorada ele teve um segundo relacionamento que durou mais de um ano. Nós fomos apresentados à família da namorada, todos o tratavam super bem. Eu intimamente me perguntava “será que essa família sabe que ele é um adolescente trans?”, e me sentia traindo a confiança daquela mãe que estava ali comigo jantando, tomando um vinho, me recebendo na família dela.

Eu me sentia uma farsante por não estar sendo honesta com ela. Mas ao mesmo tempo eu sabia que a filha dela estava com o meu filho, que é uma pessoa incrível, respeitosa, dócil e amorosa, filha de uma mulher incrível como eu, que sou uma super mãe de família, matriarca, responsável, trabalhadora, provedora e amorosa, então decidi focar no fato de que o Jakob e a nossa família somos pessoas incríveis, e que eles tinham uma sorte tremenda por terem cruzado o nosso caminho. 

Políticas inclusivas para a comunidade trans na Austrália

SBS em Português - Aqui na Austrália apenas em dois estados você precisa fazer uma cirurgia nos seus órgãos reprodutores antes de fazer o pedido para mudar o seu gênero na certidão de nascimento. Um desses estados é Queensland e o outro é New South Wales. Em todos os outros estados você não precisa fazer uma cirurgia, basta você se auto-declarar em qual gênero você se adequa melhor. O que foi possível fazer em relação ao Jakob neste sentido?

LW - Nós conseguimos alterar o nome dele na certidão de nascimento com uma simples solicitação online, mediante o consentimento dos dois pais do menor, pois na época ele tinha 13 anos, explicando que a mudança se deu pelo fato dele se identificar como homem.

Não é possível alterar o gênero na certidão de nascimento aqui em Queensland, a menos que a pessoa tenha passado por uma cirurgia nos órgãos reprodutivos. Uma pena, pois acho que existe uma parte dos trans que poderia estar confortável sem modificar radicalmente o corpo, mas que acaba passando desnecessariamente pela cirurgia para alcançar esse status burocrático na documentação.

Mas a Gender Clinic nos deu um atestado que nos permitirá a opção de não ter o gênero explícito no passaporte do Jakob.

SBS em Português - Na área da saúde você já falou que o Medicare, o sistema público de saúde australiano, cobriu praticamente todos os gastos com a transição do Jakob. De acordo com a sua experiência pessoal, o governo australiano oferece algum tipo de suporte para o adolescente que está passando por um processo de transição de gênero também na área da educação? 

LW - O apoio do estado na area médica tem sido fantástico e acredito que vamos conseguir cada vez mais subsídios para esse processo que se torna a cada dia mais comum.Todas as consultas e exames realizados na Gender Clinic são subsidiados pelo governo de Queensland.

Tive também uma grande surpresa em relação ao apoio prestado pela escola. Eu precisei ir a uma reunião com a assistente social para autorizar a mudança de uniforme e nome do meu filho, e fiquei muito bem impressionada ao receber um material oficial impresso do Queensland  Education sobre os processos e procedimentos praticados em relação a crianças trans.

Por exemplo, há diretrizes de acesso a banheiros apropriados, prática de esportes em que geralmente os times e categorias se dividem de acordo com o gênero, e também sobre a utilização adequada de dormitórios em passeios e acampamentos. Enfim, eu me senti muito amparada e tranquilizada em saber que outras pessoas já haviam passado pelo que eu passei e que já existe bastante orientação e políticas de inclusão escolares implantadas para nos atender da melhor forma possível.

Contribuindo positivamente para uma sociedade mais inclusiva

SBS em Português -  Fale um pouco sobre a sua relação com o seu filho antes e agora. O que mudou?


LW - Inicialmente eu tentava fazer tudo o que eu podia para protegê-lo de sofrimentos. Mas depois fui entendendo que o sofrimento é inerente à vida, assim como o prazer e a felicidade, e cheguei a conclusão que mesmo se ele não fosse trans, ele poderia encontrar dor na vida. Decidi falar honestamente com ele sobre o que eu tinha medo e também sobre as dúvidas e curiosidades que eu tinha em relação à transição de gênero.

Resolvi ser o mais companheira e parceira possível, resolvi apoiar e experimentar tudo junto com ele. Então, resolvi amá-lo e respeitá-lo em todos os momentos possíveis e imaginários. Resolvi que eu seria o porto seguro dele, e ele o meu. Demonstrei que tinha confiança no processo e que acreditava que ele é capaz de fazer suas próprias escolhas. Decidi me perdoar e pedir perdão a ele pelos meus erros e pela minha falta de aceitação no início da transição. Decidi demonstrar a minha profunda admiração por ele ter a coragem de ser quem é de verdade. E também a minha profunda gratidão por ele tem me ensinado tantas coisas.

Com base nesse imenso amor e tremenda confiança a nossa relação foi se fortalecendo. Mostrar para um filho que a gente confia nele gera um tremendo emponderamento, a criança vai amadurecendo e começa a cuidar da gente em retribuição. Hoje nós somos mutuamente protegidos pela força do nosso amor.

SBS em Português- O que você diria para uma mãe ou para um pai onde um dos filhos esteja passando por um processo de transição de gênero?

LW - Diria que o gênero não define nenhuma qualidade de um ser humano. Diria para se cercar de um grupo de pessoas que realmente são significativas, e para olhar para si mesmo como um ser humano que está na vida para ser feliz independente do julgamento dos outros.

Atualmente eu estou escrevendo um livro para um dia poder dividir a minha experiência de mãe, pois acho que a literatura, a mídia e o interesse em geral ficam muito focados no indivíduo que transita, e esse é um enfoque muito sufocante e limitador para quem está em volta, pois a transição é bem maior do que o indivíduo.

Transitam todos juntos: o trans, a mãe, os irmãos, a família, os amigos, a escola, etc. Temos que entender que o trans é uma pessoa corajosa que merece todo o nosso suporte para viver a sua verdade. E essa verdade se expressa de uma forma tão poderosa que é capaz de modificar a verdade de quem está a sua volta. Para mim, abraçar essa experiência foi muito libertador e eu gostaria muito que essa vivência pudesse transformar a vida de outras pessoas de forma positiva.

Se você estiver precisando de ajuda, contate  ou on 13 11 14.

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