Brasileira sobrevivente do holocausto, Ira Débora Morris, de 94 anos, morreu em Sydney

Brazilian Polish Jewish holocaust survivor

Ira Debora Morris Source: Cortesia Paulo Weinberger

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Ira Débora Morris, judia polonesa, morreu no dia 5 de setembro.


A brasileira Ira Débora Morris, judia-polonesa, morreu em Sydney no dia 5 de setembro. Ela tinha 94 anos de idade, completaria 95 em dezembro. Ela era mãe do nosso colega Paulo Weinberger, que foi nosso comentarista nos jogos do Brasil na Copa da Fifa e que trabalhou aqui na SBS por mais de 15 anos como legendador e na classificação de filmes e programas. 

Nesta entrevista de dois anos atrás, Paulo conta a história de sua mãe, Ira. Ela foi a única sobrevivente da sua família, e também do seu pai Lazlo, judeu-húngaro. Eles se conheceram ao final da guerra, se casaram e foram recomeçar a vida no Brasil.
SBS. Queremos saber a história do seu pai, judeu-húngaro, e da sua mãe, judia-polonesa.  

Paulo Weinberger. É uma história bem diferente dos dois, porque a minha mãe foi a única sobrevivente da família na Polônia. Os nazistas mataram a todos da minha família, só escaparam a minha mãe e uma tia dela que havia saído antes da guerra. Uma tia que era irmã gêmea da mãe da minha mãe, que foi para Israel, que na época ainda era territória palestino britânico. E a minha mãe foi a única que sobreviveu porque escapou como não judia, pegou o documento de identidade de uma colega dela de escola, que era católica. Ela pediu emprestado esse documento e ficou, não devolveu, porque a vida dela dependia disso. E aí ela começou a usar esse nome de Irena, que virou Ira, que virou o nome da minha mãe. Porque originalmente o nome dela é Deborah Blumenstock. 

SBS. Eu estava lendo a história da sua mãe, ela falou “Dosia”. 

Paulo Weinberger. Era o apelido, um diminutivo, falava-se “Doccia”. Era o jeito que o pessoal a chamava na família. E depois que ela cresceu, começou a história toda do nazismo, e ela acabou saindo do bairro judaico de Lublin, onde eles moravam todos. Ela saía de lá para ir trabalhar bem jovenzinha, tinha uns 14 anos, e trabalhava para um oficial nazista, como ela conta nas histórias dela. Um oficial da SS que tinha inclusive uma filha da mesma idade, e por isso ele ajudou a minha mãe, porque reconheceu minha mãe como se fosse uma outra filha. Ele acabou decidindo não denunciar minha mãe como judia. Ele percebeu que ela era judia, mesmo que ela se colocasse como não judia. E ajudou, falou para ela fugir quando ele viu que a coisa iria esquentar. E a minha mãe com 14 anos escapou de Lublin, não viu a família dela mais ali, e começou a fugir para a Alemanha.

SBS. Antes de contar da fuga da sua mãe, o que aconteceu com os pais dela, seus avós, e os irmãos?

Paulo Weinberger. Ela tinha uma irmã de 12 e um irmãozinho de 7. Além de um monte de gente de família, primos e primas. O que aconteceu foi que eles desapareceram, teve incidente que ela presenciou. Minha mãe viu uma vez, com a mãe e a irmã, viu o pai passando por um bullying dos soldados nazistas. Uma coisa horrível, eles até urinaram em cima dele, o chamavam de judeu sujo, uma coisa muito triste. E eles presenciaram da janela do edifício, as crianças, com minha mãe junto. 

SBS. Eles moravam dentro de um gueto em Lublin.

Paulo Weinberger. Era um bairro que tinha muitos judeus, e uma hora virou gueto porque eles cercaram. Eles fizeram esses cercos em todos os lugares, dependia muito da época. 

SBS. E qual é a história que sua mãe se lembra da última vez que viu os pais e os irmãos?

Paulo Weinberger. Minha mãe me poupou de muitas histórias durante minha vida, não queria me contar muito disso não. Ela até tinha um pouco de medo do Brasil de quando cresci, de me educar como um judeu, tinha medo que acontecesse de novo. Então não tive uma criação muito judaica. 

SBS. Mas você teve seu bar mitzvá.

Paulo Weinberger. Tive, meu pai era mais interessado em seguir a coisa. Minha mãe era muito mais religiosa, porque a família era religiosa mesmo, todo mundo era bem religioso. Mas, depois da guerra, minha mãe abandonou isso, menos interessada e mais preocupada. Mas a última vez que minha mãe viu o pai dela, ela o viu numa fila de um campo de concentração posteriormente, depois que ela já havia fugido. Ela foi lá no campo porque ela trabalhadora não judia e tinha que fazer várias coisas que os nazistas mandavam. E uma das coisas que ela fez foi ir até um campo de concentração e encontrou com o pai, uma coisa impressionante. Fiquei muito impressionado com essa história, porque eu não sabia, e demorou meses para poder lidar com o texto que foi feito, um texto feito sobre a vida da minha mãe no Montefiore, um lar de idosos onde ela está, em Sydney. Ela está com 92 anos.

SBS. Então você ficou sabendo de mais coisas recentemente?

Paulo Weinberger. É, nessas entrevistas que fizeram com ela lá no Montefiore, e que se publicou esse texto narrado por ela, e eu fiz a edição do texto, edição, escolhi as fotos com ela. E foi muito difícil terminar, porque eu não tinha vontade de sentar na frente do computador e ler aquelas coisas todas, e principalmente porque tinha informação que eu não conhecia e que me fazia ficar com um fardo, um peso, sabe? Nossa, minha mãe ainda viu o pai dela mais uma vez mas não viu o resto da família, e foi uma despedida muito esquisita, porque não dava pra ser normal. Era um judeu na fila do campo e ela supostamente uma não-judia, o pai tendo que fingir que não está acontecendo nada. Ela conseguiu falar com o pai um pouco, e o pai já disse pra ela, pelo que lembro, que o pai já não tinha mais contato com o resto da família. Uma história muito triste. E claro, minha mãe depois conseguiu sobreviver porque ela chegou na Alemanha. Conseguir ir escapando, inclusive foi ajudada por alguns poloneses. Teve um episódio em que ela estava numa cidadezinha da Polônia e ela ficou muito doente, e o pessoal ajudou ela.

SBS. Ela teve tifo, não foi?

Paulo Weinberger. Ela teve tifo. E o pessoal na prisão, na cadeia da cidade, o delegado de polícia a colocou na prisão para protegê-la porque sabia que os nazistas não iam atrás dela lá. Ela delirava, falava coisas e o pessoal percebeu que ela era judia. Então eles protegeram a minha mãe. Interessante isso, porque agora aprovaram uma lei na Polônia que proíbe que se fale do Holocausto e do nazismo como se fosse uma coisa polonesa. É uma coisa muito polêmica, acho duvidoso isso aí, esquisito, porque houve muitos poloneses que deduraram, e os nazistas tiraram as pessoas das casas, e os poloneses entraram nas casas dos judeus. Tem muitos episódios de poloneses que tomaram as casas de judeus que saíram porque denunciaram. Teve muita atuação de polonês contra judeu. E o governo da Polônia atual quer negar isso, de querer dizer “não, a gente não fez nada”. Besteira, ajudaram os nazistas. Mas, claro, houve muitos que ajudaram os judeus, sempre tem os bons e os ruins. 

SBS. Claro. E depois da guerra, se descobriu qual foi o destino dos familiares da sua mãe? 

Paulo Weinberger. A minha mãe nunca soube exatamente. Ela soube que não tinha ninguém, morreram todos. Ela ficou em campos de refugiados depois da guerra.

SBS. E a história de seu pai?

Paulo Weinberger. Ele teve uma história bem diferente porque a família dele não foi afetada. Ele teve uma irmã que faleceu porque ela jogava handebol, e ela levou uma bolada no corpo muito forte e depois desenvolveu um câncer, uma história muito esquisita, e faleceu. Mas não houve durante a guerra um problema direto com a família do meu pai na Hungria. Só que, no final da guerra, pegaram o meu pai e o mandaram para um campo de concentração que, se não me engano, foi Mauthausen, que teve a coisa dos americanos chegarem em maio de 45 e liberam o campo. E meu pai ali que tinha esse amigo que também foi para o Brasil depois, e que criou a Companhia das Letras. Era uma impressora no início, e depois virou a editora Companhia das Letras. O filho desse amigo do meu pai jogava bola comigo no Clube Húngaro, que era o Luiz Schwarcz. Muito conhecido no Brasil hoje em dia, porque é dono da Companhia das Letras e participa de várias coisas, uma editora muito importante. A esposa também publica livros, é uma socióloga e antropóloga. E o pai do Luiz era amicíssimo do meu pai e escapou do campo de concentração enquanto meu pai ficou. E depois, quando acabou a guerra e chegaram os americanos, meu estava pesando 32 quilos. Era pele e osso. Imagino que se os americanos chegassem algumas horas depois, ou alguns dias, eu não tinha pai, não estaria aqui. Uma coisa absurda, mas era o final dos poucos sobreviventes dos campos de concentração andando como zumbis. 

SBS. E como foi que seu pai e sua mãe se encontraram?

Paulo Weinberger. Aí eles eram refugiados separadamente, mas havia os campos de refugiados na Europa, e eles se encontraram num trem que ia para um campo de refugiados. Meu pai estava com um grupo de outros húngaros e viu minha mãe, que era muito linda, parecia a Katharine Hepburn, parecia uma atriz. E começou a falar com minha mãe, se interessou, e ela também o achou muito simpático e começaram a conversar, a coisa se desenvolveu, começaram a namorar. Ficaram num campo de refugiados juntos, e foram depois para Roma, num campo de refugiados que ficava na Cinecittà, estúdio de cinema de Roma, onde (Federico) Fellini fez os filmes dele, e vários outros. Ficaram lá e a essa altura resolveram se casar, e se casaram na sinagoga histórica de Roma. No centro histórico de Roma tem uma sinagoga antiga, e foi lá que se casaram. E depois foram para o Brasil. 

SBS. E como é que o Brasil entrou na história?

Paulo Weinberger. Tinha um amigo do meu pai que também se chamava Laszlo Gouldner, que também estava xeretando para descobrir a melhor alternativa para sair da Europa. E ele ouviu falar do Brasil e foi ao consulado brasileiro, e pegou o meu pai e falou, Laszlo, vamos lá ver como é que é a história. E o meu pai foi junto com o Laszlo Gouldner e achou uma boa ideia ir para o Brasil. Voltou, falou com minha mãe, resolveram que tudo bem, e pegaram o navio para o Brasil. 

SBS. Onde havia uma comunidade judaica muito grande.

Paulo Weinberger. É, muita gente que estava indo para o Brasil. Os refugiados foram para tudo quanto é lado, Estados Unidos, alguns foram para outros países da Europa, mas a maioria queria sair da Europa. Em geral foram para os Estados Unidos, Canadá, outros vieram aqui para a Austrália, e outros para a Palestina que já estava virando Israel. 

SBS. Em algum momento fecharam a Palestina porque não queriam deixar mais judeus chegarem, porque já estava demais.

Paulo Weinberger. Estava aumentando o número. Mas aí em 48 já chegou a se aprovar o Estado de Israel, com aprovação unânime. Mas meus pais foram para o Brasil e chegaram no Rio de Janeiro.

SBS. E você nasceu em 53. Olhando agora em perspectiva, é logo depois da guerra.

Paulo Weinberger. Pois é, o final da guerra foi em 45, em 48 meus pais foram ao Brasil, cinco anos depois eu nasci. 

SBS. E como é crescer com esse trauma familiar? 

Paulo Weinberger. Olha, como disse antes, minha mãe me poupou muito disso. Ela procurou evitar que eu tivesse uma consciência de vir de uma família que sobreviveu, de sobreviventes do Holocausto, não era um assunto que foi muito importante. Foi mencionado em alguns momentos, eu fiquei sabendo, mas quando eu era mais velho um pouquinho, não quando era muito menininho. Mas não era uma coisa que minha mãe me contou muito a respeito, nem meu pai, e eu também não fui muito criado dentro da comunidade judaica. É claro, eu tinha muitos amigos judeus que por coincidência acabaram sendo meus amigos, todos eles muito mais ligados à religião, ou mesmo à comunidade, que eu. E eu era mais ligado no Brasil. Claro, fiz meu bar mitzvá, aos 13 anos, para ser reconhecido como adulto. Eu fiz o meu, mais pelo meu pai que queria, tive aulas de hebraico com um israeli, um senhor, e ele gravou para mim o texto religioso num LP antigo, que você gravava no LP, e eu pegava o LP em casa, um som péssimo, para aprender a reza toda. E eu aprendi muito bem, eu lembro que eu lia todo o texto hebraico direto. Qualquer coisa que se punha na minha frente em hebraico eu lia, sabia o que tava querendo dizer. E eu li toda a Torá, a Bíblia judaica, na sinagoga, e eu li direto todo o texto, cantei, rezei tudo. Mas nunca fui muito ligado à coisa, achava que limitava muito, eu era uma pessoa mais aberta, mais livre, sendo judeu mas sem querer me isolar dentro dessa comunidade.

SBS. E seu pai e sua mãe quiseram um dia voltar para a Polônia ou Hungria?

Paulo Weinberger. Não, nunca voltaram. Talvez meu pai tenha visitado a Hungria, mas não foi a campo de concentração. Ele foi talvez ver a família, porque a família sobreviveu, ele tinha a mãe e o pai, um irmão e uma irmã. Ele inclusive faleceu antes do irmão e da irmã. Faleceu muito jovem, aos 54 anos, tava muito envelhecido porque tinha tido diabetes. Depois quando eu era bebezinho teve um acidente muito feio, ele tava na parte de trás do carro, e quebrou o fêmur, teve que colocar uma placa na coxa, e desenvolveu diabetes.

SBS. Mas a história da sua mãe é impressionante.

Paulo Weinberger. Sim, ela teve vários episódios, aquela mistura de escolhas bem feitas, e com 15 anos, e com sorte, porque teve compreensão de outras pessoas. Teve um episódio que um policial levou a minha mãe, a estava levando de bonde, porque eles não tinham carro, para ir para a estação de polícia, e a deixou no ponto final do bonde, uma história assim, para que ela pudesse fugir. Mas o fato de ela não ter fugido indicou a ele que ela estava falando a verdade, que ela não era judia, tinha um documento de católica. Era um teste, se ela não fugiu, então tudo bem, ela não ficou com medo e a libertou. É incrível, ela pensou em fugir, mas pensou, “não vou fugir, vai dar mais problema fugir que ficar aqui”. E conseguiu depois seguir o caminho dela. Isso na Polônia ainda. Aí ela conseguiu trabalhar, como trabalho forçado durante a guerra, na Alemanha para duas famílias diferentes. A primeira não foi muito boa experiência, ela acabou pedindo para mudar, e na segunda ela ficou muito tempo. Depois ela foi visitar essa gente, 40 anos depois. Foi fantástico.

SBS. Teve gente boa também na história.

Paulo Weinberger. Claro que teve. Era uma minoria, mas teve. Dá pra imaginar, todo mundo fica com medo, quer sobreviver, quer escapar e olham para o outro lado, fingem que não estão vendo nada para sobreviver. Quem tem coragem ajuda, se arrisca, porque tem coração bom e houve vários casos de pessoas que foram ajudadas. Mas infelizmente a máquina de matança era tão imensa, matava-se milhares de pessoas diariamente nos campos. Nunca houve na história da humanidade uma coisa desse tipo. E isso aí funcionou muito bem, conseguiram matar muita gente. E não foram só judeus. De judeus foram 6 milhões, provavelmente mais para 7 milhões, mas também mataram o mesmo tanto de não judeus, porque tinha as matanças durante a guerra, e o Stalin que deixou gente morrer de fome.

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Essa entrevista foi feita no Dia Internacional das Vítimas do Holocausto, que relembra o genocídio cometido pelos nazistas contra judeus e também contra homossexuais, ciganos e opositores políticos durante a Segunda Guerra Mundial. Esse dia é observado todos os anos no dia 27 de janeiro, que celebra a libertação em 1945 do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, o maior centro de extermínio nazista. 

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