A polémica em volta da tradução de Amanda Gorman: É preciso ser mulher e negra para traduzir uma mulher negra?

American poet Amanda Gorman recites a poem during the Inauguration of US President Joe Biden

Source: AAP

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Confira a crônica desta semana do correspondente da SBS, em Lisboa, Francisco Sena Santos.


Raquel Lima é portuguesa, é afrodescendente, mulher, negra, ativista, poeta de spoken-word, conhecedora da língua inglesa.

Raquel Lima, agora com 38 anos, também é poeta, performer, arte-educadora, licenciada em Estudos Artísticos e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais.

É ela quem, em Portugal, está a trabalhar na tradução da primeira coletânea de poemas de Amanda Gorman a publicar em Portugal. 

Ela já pôs em português aqueles versos spoken-word que Amanda Gorman levou à posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos.

O perfil de Raquel Lima, por ser afro, por ser mulher, por ser uma ativista, também por ser culta e competente no ofício de trabalhar com as palavras, não suscita os problemas que nestas últimas semanas surgiram  nos Países Baixos e em Espanha e que fazem disparar uma pergunta, esta: Será que estão a ficar loucos na casa editora de Amanda Gorman nos Estados Unidos da América? Só uma mulher negra pode traduzir os versos da mulher negra?

Recapitulemos.

A jovem poeta Amanda Gorman, 22 anos, foi a surpresa e a figura mais inspiradora na cerimónia de posse, em 20 de janeiro, da presidência Joe Biden e Kamala Harris, no Capitólio de Washington. A negra Amanda, com vestido amarelo vivo e um diadema (há quem diga que parecia um donut em coroa sobre os cabelos) vermelho, emocionou a América e o mundo, todos os que acompanhámos a posse presidencial nos EUA temos na memória aquela vibrante interpretação do poema The Hill We Climb (a colina que escalamos) que ela própria escreveu.

Amanda Gorman, pontuou cada palavra com as mãos e com a energia de um sorriso de incitamento à confiança, atitude tão política como a poesia que escreveu.

A mensagem no poema é poderosa, dita com extraordinária com convicção: canto à fraternidade, à união do povo e da nação americana (“um país mortificado mas inteiro”), após a funda divisão gerada na presidência Trump. Este apelo de Amanda Gorman à coesão torna ainda mais absurdos os episódios seguintes.

A poesia de Amanda emocionou tanto que de toda a parte surgiram casas editoras a querer publicar a tradução da poesia desta inspiradora afroamericana.

Nos Países Baixos, foi a Meulenhoff, grande editora de Amesterdão, com vastíssimo catálogo de traduções de escritores aclamados.

A Meulenhoff teve o cuidado de atribuir a tradução de Amanda Gorman a uma também poeta, Marieke Lucas Rijneveld, 29 anos, escritora premiada com o International Booker Prize. Marieke faz questão de se apresentar como pessoa não binária (faz sentido perguntar: e o que é que interessa para o caso que seja uma pessoa que se identifica igualmente como homem e como mulher?), particularidade que a editora Meulenhoff considerou interessante por terem, autora e tradutora, história de ativismo e convergência de combates: Amanda Gorman milita nas questões raciais e na luta contra a discriminação, Marieke Lucas luta pelo reconhecimento da identidade não sexuada.

Amanda Gorman, que faz questão de seguir todos os desenvolvimentos da publicação e tradução da poesia que cria, começou por achar boa ideia a escolha de Lucas para a tradução para neerlandês.

Mas, entretanto, apareceu uma coluna de opinião num influente jornal de Amesterdão, o De Volkskrant, em que a cronista e ativista negra Janice Deul (define-se fashion/cultural activist) critica a entrega da tradução a um ser branco “já que para captar todos os matizes do significado dos poemas [da negra Amanda Gorman] há que ser negra como ela”.

A opinião de Janice Deul abriu polémica que inflamou tertúlias e redes sociais não apenas nos Países Baixos, e a Viking Books, editora de Amanda Gorman, detentora dos direitos de publicação do livro e uma grande casa editorial nos EUA, reabriu consultas sobre a publicação.

Perante os argumentos raciais na discussão, Marieke Lucas, que já tinha avançado parte do trabalho de tradução, incomodada, talvez intimidada com o ruído irracional, comunicou à editora que decidiu renunciar à tarefa e cancelar o contrato de tradução de The Hill We Climb.

Mas ainda só estávamos a meio da colina da argumentação absurda. Dias depois, nova tradução contratada foi cancelada. Desta vez, para catalão. A editorial Univers, comunicou ao poeta Vitor Obiols que, três semanas antes tinha convidado, que a tarefa atribuída estava “cancelada”. Motivo invocado: “O perfil dele não é adequado”.

Victor Obiols, 60 anos, respeitado pela qualidade das traduções que fez de William Shakespeare, de Oscar Wilde e outros grandes.

Obiols não se ficou sem comentar: “Se não posso traduzir uma mulher por ela ser negra, jovem, americana e do século XXI, então também não poderia ter traduzido Shakespeare, porque não sou um inglês do século XVI, e ainda menos poderia ter traduzido Homero por não ser um grego do século VI A.C.”

Há que chamar as coisas pelos nomes: recusar que uma branca, por ser branca, traduza a poesia de uma negra, é racismo primitivo.

Esta controvérsia vem apequenar e meter dentro do fechado instinto gregário a obra de uma poeta que tanto inspirou quando se impôs naquele 20 de janeiro da posse presidencial nos EUA.

Não sabemos se todo este absurdo tem o aval dela. Que se saiba, ela não se pronunciou sobre estas exclusões.

Imagina-se que Amanda Gorman, ao deixar este absurdo correr, não esteja a pretender provocar-nos com uma paródia ao politicamente correto à americana tão outra vez na crista da onda.

A tarefa de traduzir implica introduzir uma outra identidade na identidade de quem traduz. É, necessariamente, um ato criativo da parte de quem traduz. Umberto Eco falava de “negociação interior” na busca da palavra e da construção da frase no modo que parece mais ajustado ao sentido original da escrita.

A tradução é um corpo a corpo entre duas línguas diferentes. A personalidade de quem traduz deve mergulhar na cultura de quem escreve, na cultura da escrita original e na da escrita traduzida.

Está reconhecido que uma tradução nunca é definitiva e pode sempre ser questionada, alterada. Não por causa da cor da pele, da idade ou da religião de quem traduz, mas pelo facto de a tradução, generosa, ter sempre abertura à dúvida sobre a interpretação.

É ridícula qualquer pretensão de semelhança física, política ou de classe social entre quem traduz e quem é traduzido.

Para ter o direito moral de traduzir o grande Jorge Luís Borges será preciso ser cego?

A tradução de Dostoiewski, Tolstoi, Tchekhov ou Puchkin só pode ser feita por um russo? A de Orhan Pamuk, por um turco de Istambul?

Para traduzir Arthur Rimbaud ou D.W. Lawrence é preciso ser gay? Para Susan Sontag ou Anais Nin há que ser lésbica?

Para traduzir D’Annunzio é preciso ser fascista? Para traduzir Céline é preciso ser antisemita? Para traduzir Cortázar ou Garcia Marquez há que ter ideologia esquerdista revolucionária?

Obviamente, o que importa é a competência, a exigência e, eventualmente, a experiência. Como em tudo.

No belíssimo poema oral The Hill We Climb, Amanda Gorman exalta a democracia e a liberdade, reclama “um país comprometido com todas as culturas, cores, feitios e condições humanas” e incita a que “coloquemos de lado as diferenças, deitemos fora as armas para podermos abrir os braços para nos abraçarmos”.

É irónico que toda esta confiança seja traída pela segregação ligada à publicação do poema, com atitudes que se traduzem pela divisão e separação em vez de coesão e reconciliação.

Seja como for a spokenword de Amanda Gorman e a interpretação que ela faz deste poema The Hill We Climb é sedutora – e por isso o tema da tradução está a produzir tanta discussão. 

Portugal é um país multicultural. Respira-se essa atmosfera multicultural na cidade de Lisboa onde é cada vez mais forte o encontro de criadores que têm origem no Brasil, em Cabo Verde, em Angola, em Moçambique e em outros países. O jornal Público abriu sobre este caso da tradução de Amanda Gorman um interessante amplo debate com múltiplas opiniões, representando identidades diversas.

Paulo Faria, português, escritor e tradutor, reflete assim em voz alta: “Sou homem e sou branco. Mas, se me perguntarem o que faço, direi apenas que sou escritor e tradutor. Não me passa pela cabeça apresentar-me como um escritor e tradutor branco, do género masculino.”

É também esta a posição da escritora Djamilia Pereira de Almeida, negra com dupla nacionalidade, angolana e portuguesa, autora dos muito elogiados romances Esse Cabelo e Luanda, Lisboa Paraíso. Ela responde à jornalista Isabel Lucas que lhe colocou o tema: “A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert. Essa é uma capacidade literária. O género, a cor, o meu contexto familiar não são o que me qualifica para traduzir Toni Morrison, nem o que me desqualifica para traduzir Pushkin.” 

Outro testemunho, o do escritor brasileiro Itamar Vieira Júnior: “Fico imaginando o que Amanda Gorman pensa disso tudo. Em princípio eu não me importo com quem traduz um meu livro. Importa é que seja um tradutor que crie um vínculo com a história, que tenha afinidade, que quando for necessário possa também ouvir o autor.” 

Itamar acrescenta um exemplo que faz pensar: é a tentativa da produção de um musical sobre Dona Ivone Lara (1922-2018), cantora e compositora brasileira conhecida como a “rainha do samba”. Para o papel foi escolhida a cantora Fabiana Cozza. Itamar explica: “Fabiana Cozza é uma mulher negra, mas tem um tom de pele mais claro do que o de Dona Ivone Lara e houve uma polémica grande. Fabiana é uma activista, mas uma parte do movimento negro se voltou contra ela. E ela disse: ‘eu fui dormir uma mulher negra e acordei uma mulher inimiga para alguns’. Viam-na como ameaça porque não tinha o tom de pele de Dona Ivone Lara.

Ela escutou, compreendeu e desistiu do papel. Isso mostra que há uma linha muito delicada, como se ser negro fosse algo homogéneo e não é. Dentro da própria negritude há diferenças. Uma pessoa negra de pele mais clara tende a sofrer menos preconceitos, tende a conseguir galgar lugares mais altos na sociedade. As pessoas mais retintas sofrem um racismo diferente. O racismo não é homogéneo entre os negros.”

Infelizmente, não há erro de tradução em toda esta história. Há erro nas atitudes, absurdas, que em nome do purismo politicamente correto geram um ostracismo moderno.

É tudo tão estranho que até vem à ideia uma suspeita: será que em fundo a tudo isto está um golpe publicitário que usa a língua na pele? A ser assim, não é menos lástima.


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