A pandemia está a comprometer o desenvolvimento das crianças no mundo inteiro

As crianças e as suas famílias precisam de apoio extra e atempado no contexto da pandemia.

Source: AAP

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Psicólogos, investigadores académicos e outros especialistas na área da educação e da medicina infantil alertam para o impacto negativo que a pandemia está a ter no desenvolvimento das crianças no mundo inteiro.


Com 2022 a marcar o terceiro ano consecutivo da pandemia Covid-19, os investigadores e profissionais na área da Educação estão, finalmente, em condições de começar a entender melhor de que forma o isolamento social prolongado afeta as crianças no seu desenvolvimento físico e psicológico.

Viren D'Sa é pediatra especialista na área do neuro-desenvolvimento do Hasbro Children's Hospital em Rhode Island - que continua a ser uma das regiões dos Estados Unidos da América mais atingidas pela pandemia.

Em paralelo, Viren D´Sa é também professor associado na universidade de Brown, onde desenvolve um projeto de investigação que iniciou há vários anos atrás e que neste momento está em fase de cruzamento de resultados cognitivos comparativos entre o período que vai de 2011 a 2019 e os anos da pandemia (respetivamente 2020 e 2021).

O estudo de D´Sa, que envolve um grupo de 290 crianças participantes com cerca de um ano de idade, tem revelado uma redução significativa no desempenho verbal, motor e cognitivo geral das crianças. Os resultados desta investigação mostram ainda que esta tendência é acentuada nas crianças do sexo masculino e sobretudo nas crianças de famílias mais vulneráveis ao nível socioeconômico.

 "Quando falo em capacidade motoras, não me refiro à capacidade motora grossa como seja andar, correr, pular, rastejar... Refiro-me antes, mais ao nível da motricidade fina: como estas crianças podem por exemplo manipular alguns objetos ou mover coisas... basicamente como usam algumas dessas capacidades de processamento para manipular objetos no seu ambiente natural. Algumas dessas capacidades caíram um nível do desvio padrão, às vezes até em cerca de dois níveis do desvio padrão. Da mesma forma, em alguns dos estádios de aprendizagem inicial mais gerais, as capacidades destas crianças também diminuíram. E eu acho que isso tem a ver com o fato de que estas crianças provavelmente não tiveram uma oportunidade estruturada para ganhar e desenvolver as referidas capacidades."

De acordo com a organização infantil UNICEF, espera-se que os impactos da pandemia sejam (citando) “mais prejudiciais para as crianças nos países mais pobres e nos bairros mais carenciados, ou seja, para aqueles já desfavorecidos ou em situações vulneráveis”.

Viren D´Sa, por seu turno, reforça que muitas crianças pequenas descobriram que seus cuidadores e suas rotinas mudaram inesperadamente durante a pandemia.
"No processo de desenvolverem a sua autonomia, como que tentando encontrar o seu próprio espaço neste mundo de hoje, de repente, estas crianças foram como que expulsas e isolados das pessoas. Então estamos a observar um grande aumento de problemas de humor, de ansiedade e de dificuldade em seguir as instruções que lhes são dadas, porque os períodos de atenção também foram interrompidos."
Na Austrália, no Sydney Children's Hospital, o psicólogo clínico Adam Guastella também tem vindo a observar tendências idênticas nas crianças australianas, decorrentes do isolamento social prolongado.

Outro facto importante é que, segundo dados recolhidos em julho de 2020 referentes a menores de 18 anos, as visitas às urgências dos hospitais de Nova Gales do Sul por automutilação e ideias suicidas aumentaram 31%, em comparação com o mesmo período de 2019.

Adam Guastella alerta que este aumento das visitas às urgências por crises de saúde mental infantil que diz ser muito preocupante:

"E assim, neste hospital como certamente noutros hospitais pelo país fora, verificamos um aumento de jovens nas urgências. E esse aumento é particularmente relevante para os mais novos. E foi particularmente visto na Sydney Kids Network (Sydney Children's Hospitals Network) em mulheres jovens, independentemente do nível socioeconômico (...)"
"(...) Este facto tem sido associado a um aumento de tentativas de suicídio por parte de jovens e às respetivas respostas de emergência. Também houve um aumento particular das vulnerabilidades infantis e das suas dificuldades de desenvolvimento neurológico." - reforça Guastella.
Com listas de espera para consultas com profissionais de saúde mental que chegam a seis meses, Guastella diz que as urgências dos hospitais passaram a estar na linha da frente.
"É um quadro complexo porque sabemos que parte do motivo pelo qual estas pessoas procuram as urgências dos hospitais é porque estas família muitas vezes não têm mais para onde ir. Não conseguiram marcar uma consulta com o psicólogo ou o psiquiatra que normalmente faria o encaminhamento e, assim, os hospitais tornaram-se no único local de apoio para muitas famílias."
Por outro lado, à medida que o tempo passa e que as crianças já estão de regresso à escola outra vez a partir do final deste mês, pesquisas da área da educação relembram as famílias quão difícil tem sido para os alunos aprenderem remotamente.

Anthea Rhodes, que é simultaneamente pediatra do Royal Children's Hospital em Melbourne e diretora da National Child Health Poll do mesmo hospital, reporta algumas das principais descobertas da investigação trimestral de 2000 famílias australianas com crianças, focada na experiência destas famílias relativamente à aprendizagem remota, e aos aspetos da saúde mental e física a ela associados.

Segundo Anthea Rhodes, as crianças de lares mais pobres e vulneráveis ​​são os que estão em maior risco:
"Crianças que já podem ter algumas dificuldades subjacentes à sua aprendizagem ou às suas capacidades sociais, realmente viram as suas condições deteriorarem porque passaram longos períodos em casa. Elas podem ter perdido a capacidade de desenvolver suas habilidades. Eles podem ainda ter um ambiente doméstico incrivelmente stressante que pode estar relacionado com problemas financeiros. Que tal como sabemos, é a situação vivida por cerca de um quarto das famílias em toda a Austrália nesta pandemia."
Adam Guastella, que acumula a função de professor do Brain and Mind Centre da Universidade de Sydney, acredita que o risco contínuo do COVID-19 precisará ser gerido de forma a permitir que as crianças frequentem a escola presencialmente.
"É realmente importante que as escolas permaneçam abertas porque penso que estamos a ver os efeitos provocados pelo facto de as crianças não estarem a manter as suas interações diárias normais, principalmente com os seus colegas, o que, por enquanto parece afetar o desenvolvimento destas crianças a curto prazo, mas que eu espero que não venham a impactá-las a longo termo."
"(...) Trata-se de aprenderem a ser flexíveis e a adaptarem-se a ambientes em mudança. E estas capacidades de desenvolvimento são asseguradas eficazmente através das atividades físicas e desportivas (no caso das capacidades motoras) e a brincar (no caso das habilidades cognitivas)." - acrescenta ainda Adam Guastella

Guastella apela aos responsáveis pelas políticas estaduais e federais australianas que trabalhem juntos para garantir que haja mais e melhor acesso a psicólogos para crianças, pais e professores, bem como apoio para garantir um número adequado de funcionários no setor de saúde mental, particularmente durante o período em que as crianças regressam à aprendizagem na sala de aula a tempo inteiro.

Anthea Rhodes diz, por seu turno, que embora tenha havido uma atenção e financiamento acrescidos para a saúde mental infantil nos últimos seis meses em vários Estados do país, há ainda muito espaço para melhorias:
"Poderei eu afirmar que o que temos é suficiente? Eu diria que até vermos todas as crianças a prosperar no seu melhor, nunca será suficiente. Assim sendo, precisamos continuar a investir neste assunto."
"E precisamos entender exatamente como podemos fazer isso da melhor maneira e para cada criança. E não esquecendo que este é um desafio social mais alargado, onde se as famílias como um todo - os pais e consequentemente as crianças, têm acesso a uma situação financeira estável, então em última análise, cada criança tem o melhor começo de vida possível." - afirma ainda Anthea Rhodes.

A equipa da SBS em Português apela a todos os que sintam que precisam de ajuda que não hesitem em contatar o serviço de apoio em caso de crise da Lifeline - 13 11 14. Podem ainda aceder ao serviço de apoio em situação de suicídio - 1300 659 467, ou ainda à linha de ajuda a crianças - 1800 55 1800.

Esta é uma história de Biwa Kwan para SBS News, apresentada por Carla Guedes para SBS em Português.




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